Os números são de uma epidemia. Três milhões e 300 mil mortes em 2012. O agente por trás de tantos óbitos — 5,9% dos registrados no mundo naquele ano — não foi um vírus ou uma bactéria ou um tumor maligno. Ele está dentro de copos e garrafas e é consumido por 47,7% da população global acima de 15 anos. Trata-se do álcool, substância diretamente relacionada com mais de 200 doenças, como cirrose hepática, alguns cânceres, diabetes e distúrbios neuropsiquiátricos. O abuso da bebida, segundo um relatório divulgado ontem pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mata mais que HIV, atos violentos e tuberculose. O documento também mostra que, no Brasil, o consumo de álcool está acima da média global.
Baseado em dados dos 194 países-membros das Nações Unidas, o documento alerta que a bebida não apenas provoca danos diretos à saúde, mas aumenta a suscetibilidade a males infecciosos e está por trás da ocorrência de crimes e acidentes. A OMS traçou o perfil de consumo das nações, relatou o impacto da bebida na saúde pública e avaliou as respostas das políticas governamentais. No total, o consumo anual foi de 6,2l de álcool puro por ano na população com mais de 15 anos. Contudo, como 38,3% do planeta é abstêmio, calcula-se que os que bebem ingerem 17l no período de 12 meses.
A região que mais consome álcool é a Europa, com 10,9l por ano — na Bielorrússia, a campeã mundial de ingestão, são 17,5l. Já o Mediterrâneo é onde menos se bebe: 0,7l anualmente. O relatório indicou que, entre 2008 e 2010, os brasileiros ingeriram 8,7l ao ano, mais que a média mundial. A quantidade caiu, comparado ao biênio 2003-2005, quando o consumo no Brasil era de 9,8l. Nas Américas, os campeões de bebida são Granada (12,5l), Santa Lúcia (10,4l), Canadá (10,2l), Chile (9,6l) Argentina (9,3l), Estados Unidos (9,2l) e Paraguai (8,8l). O país do continente americano que menos bebe é a Guatemala (3,8l).
“É preciso fazer mais para proteger as populações das consequências negativas do consumo de álcool”, disse, em nota, Oleg Chestnov, diretor-geral adjunto da OMS para doenças não transmissíveis e saúde mental. “O relatório mostra claramente que não há espaço para a complacência quando se trata de reduzir os perigos do uso do álcool”, afirmou.
Políticas falhas
O levantamento indica ainda que alguns países estão fortalecendo as medidas protetivas. Isso inclui criar impostos, limitar a venda ao aumentar o limite mínimo de idade e regular a propaganda de bebidas alcoólicas. Mas as políticas públicas são insuficientes em muitas nações. Na Bolívia, por exemplo, a única política é a taxação. O país sequer tem legislação sobre a condução de veículos sob o efeito de bebida. Lá, o consumo de álcool aumentou, passando de 5,1l por ano entre 2003-2005 para 5,9l no período de 2008-2010.
Embora o Brasil tenha aprovado, em 2007, a Política Nacional sobre o Álcool e Outras Drogas, a presidente da Associação Brasileira de Estudo do Álcool e Outras Drogas (Abead), Ana Cecilia Petta Roselli Marques, avalia que, na prática, o que se têm são medidas isoladas e de alcance reduzido. “No Brasil, quem dita a política do álcool é a indústria”, critica. Ela exemplifica a questão com a Copa do Mundo: cedendo à pressão da Fifa, o país liberou a venda de bebida alcoólica nos estádios.
Na avaliação da psiquiatra e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para ser bem-sucedida, uma política de combate ao álcool tem de incluir ações de prevenção, tratamento e controle da oferta. Ana Cecilia critica as propagandas de bebida que, diferentemente do que acontece com o tabaco, são liberadas, passando mensagens que associam o álcool à diversão, ao lazer e à sensualidade de maneira inofensiva. Além disso, o foco do marketing está cada vez mais nas mulheres, observa. “Infelizmente, a mulher está replicando o comportamento dos homens no cigarro, no álcool e em todas as drogas”, diz. O documento da OMS destaca essa tendência.
No Brasil, as mulheres beberam 4,2l por ano em 2010, sendo que 11,1% consumiram álcool de forma pesada em pelo menos uma ocasião. “Nós descobrimos que, no mundo todo, cerca de 16% dos bebedores se envolveram em episódios de embriaguez — geralmente referidos por ‘beber em binge’ –, que é muito prejudicial à saúde”, explicou Shekhar Saxena, diretor de saúde mental e abuso de substâncias da OMS. Esse padrão, caracterizado pelo consumo de cinco ou mais doses de uma única vez (no caso de mulheres, quatro ou mais), está associado a disfunções no cérebro, doenças cardiovasculares e diminuição da longevidade. Segundo a OMS, o álcool encurta em cinco anos a vida dos brasileiros.
Em todo o mundo, é preciso estreitar as políticas voltadas às populações mais pobres, alertou o órgão das Nações Unidas. Embora o gênero seja o principal fator de risco — homens bebem mais –, a vulnerabilidade social também pesa no consumo. Não que a ingestão seja maior. Na realidade, enquanto 75,6% dos homens de renda alta bebem, o percentual é de 24,9% entre os mais pobres. O problema está nas consequências sofridas. “Grupos de baixa renda são mais afetados pelas consequências sociais e de saúde. Eles têm menos acesso a atendimento médico de qualidade e são menos protegidos por redes comunitárias e familiares”, ressaltou Shekhar Saxena. Ele afirmou que a OMS vai trabalhar arduamente com seus países-membros para reduzir em 10% a ingestão perigosa de álcool até 2050.
Fonte: Correio Braziliense