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A SAÚDE PRIVADA E O SOCIALISMO DAS DECISÕES JUDICIAIS

16 julho 2019 - 11:16

Admito que a tese a seguir exposta não é simpática ou palatável ao respeitável público, quase ele todo, como eu, consumidor de serviços na área da saúde prestados com esteio em contrato privado, comumente conhecido como de plano de saúde, ou de seguro-saúde.

A fim de demonstrá-la, inicialmente faço alusão ao fato inconteste de que se avolumam decisões judiciais – em especial nos tribunais, até por meio de súmulas –, em que essa relação é vista cada vez mais por um único ângulo, de uma perspectiva que parece só enxergar os direitos dos contratantes, ensejando perigoso distúrbio intelectivo em relação aos misteres de um contrato que, embora verse sobre direito essencial, tem, preponderantemente, origem privada.

Dentro desse contexto, percebe-se que há franca tendência jurisprudencial – deliberada ou não, pouco importa –, de se dar contornos, nesses contratos, à ideia de universalidade de direitos que, como se sabe, só tem vez quando se está falando da Saúde Pública, nos moldes do artigo 196, da Constituição Federal, que açambarca o conceito que deu vida ao Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Lei n.º 8.080/90.

Essa constante interferência judicial – que secunda outra intervenção estatal anterior, proveniente das resoluções normativas expedidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), sempre ampliando compulsoriamente a cobertura de serviços e procedimentos não cogitados originariamente nesses contratos –, tem travestido a atuação do magistrado: ele foi contratado pelo Estado não para distribuir justiça social – razão de ser de outro Poder da República –, mas sim para aplicar as leis incidentes à espécie e a nossa Lex Major, em último refúgio.

Albergar rotineiramente os interesses de apenas uma das partes – sempre e sempre o consumidor, como se tem assistido –, implica perigosamente ignorar uma das circunstâncias protagonistas dessa espécie de relação contratual: a de que o seu preço está assentado no serviço a ser prestado pelo fornecedor, de modo que a decisão judicial que olvida a repercussão de seu conteúdo causa o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Ao contrário do que se pode imaginar num primeiro momento, o que parece ser generosidade judicial com o dinheiro alheio, afeta danosamente os outros consumidores vinculados à mesma carteira dessa operadora de saúde, pois serão eles que suportarão o reflexo financeiro dessa decisão, emergindo ciclo vicioso que certamente ocasionará um reajuste anual em índice muito acima da inflação – relembre-se que a grande maioria dos contratos é coletivo, e sobre eles a ANS não exerce controle na majoração de preços –, resultado que, ao cabo, dificultará ainda mais o acesso da população de baixa renda aos serviços de saúde suplementar, fenômeno, aliás, que atualmente já se assiste.

Em outras palavras, é de se dizer: o aparentemente desejável socialismo de que se têm revestido as decisões judiciais, só faz tornar o capitalismo mais selvagem, nessa já espinhosa relação de mercado, traduzindo-se em maior injustiça à sociedade com um todo, no afã de se privilegiar aquele único indivíduo que se socorreu do Poder Judiciário.

Nas palavras do ministro Luiz Fux, em sua obra Tutela de urgência e plano de saúde, o Poder Judiciário corre o risco de se inclinar na consolidação do que ele denomina ser uma “jurisprudência sentimental”, já que o papel do magistrado não o autoriza a arroubos em que suas emoções enevoem sua capacidade intelectual de discernir entre o legítimo e o ilegítimo, ainda que se trate, repito, do essencial direito à saúde.

Agindo assim, ao invés de colaborar para a racionalização da judicialização na área da saúde privada, o Poder Judiciário desperdiça a pedagogia de sinalizar ao jurisdicionado que não está ali para autorizar, em quase qualquer hipótese – pois é isto o que se tem visto constantemente, em especial na Corte Paulista –, o custeio de serviços e de procedimentos não previstos, quer no contrato assinado pelas partes, quer nas aludidas normas da ANS.

Se alguém duvida do que cá se está ponderando, basta conferir, por exemplo, o teor das súmulas editadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: absolutamente todas elas – da de n.º 90 à de n.º 105 – são pró-consumidor; conquanto pessoalmente consiga vislumbrar em algumas a justa correção de eventuais iniquidades praticadas pelas operadoras de planos de saúde – elas também não são santas –, outras, no meu modesto entender, não se acham alicerçadas em qualquer base jurídica minimamente sólida.

O respeito ao arquétipo esculpido pelo artigo 197, da Constituição Federal, calcado no binômio que se extrai dos termos contratuais, somados às normas sempre ampliativas da ANS, é, a nosso ver, bastante a projetar desejável correspondência contratual entre obrigações de contratante e de contratada, deixando a convocação do Poder Judiciário somente quando tal sustentáculo for ignorado por um deles.

O tema nos põe numa delicada encruzilhada: ou, de forma madura e responsável, fugimos do espectro infantilizado de que vivemos numa exclusiva sociedade de direitos – que é o que se vê, não raramente, quando se provoca a atuação judicial –, ou permaneceremos nessa fantasia de que a tudo podemos acessar, num inconsequente desequilíbrio obrigacional que, ao privilegiar o indivíduo, fere de morte o coletivo, curiosamente sob o pretexto de se distribuir justiça social.

Fonte: O Estado de S. Paulo – 03/06/2019
Por Marco Antonio Barbosa de Freitas, juiz de Direito, Mestre em Direito da Saúde, professor de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito da Universidade Santa Cecília (Unisanta), autor do livro Tutelas Provisórias Individuais nos Contratos de Plano de Saúde

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